quarta-feira, junho 29, 2005

Perdeu-se o Tino e o Norte

As ilhas dos Açores estão-se a tornar em verdadeiros palcos de animação e prazer, num arraial permanente de pão e circo, com custos muito elevados para todos. Estimamos um valor total de 10 milhões de euros (2 milhões de contos) gasto em festas e festivais nesta época estival. Perdeu-se, de facto, o tino e o norte, neste verão. Entrou-se na euforia, no desvario, na loucura.
Mesmo correndo o risco de sermos fastidioso, e contra a corrente hedonista que avassala os Açores, divulgamos de seguida os artistas e as bandas de fora que actuam por todos os concelhos desta Região. É verdadeiramente espantoso o que se está a passar. Perdeu-se a noção do razoável, e entrou-se numa alienação colectiva preocupante e perigosa. O que vem por aí abaixo é de arrepiar qualquer contribuinte: Daniela Mercury, Ivete Sangalo, GNR, Marco Paulo, ABBA Gold, Xutos e Pontapés, Ágata, Bonga, Off The Wall, Martinho da Vila, Luís Represas, Delfins, Jéssica Amaro, John Lee Hooker Jr., Manecas Costa, Roy Caetano, Skatalites, Kila, Taity, Celtas Corto, João Pedro Pais, Jorge Palma, Squeeze Theeze Pleeze, Carla Visi, The Gift, WOK Ritmo Avassalador–Tocá Rufar, Fronzie, Pluto, Pedro Madaleno & Underpressure, Fingertips, Morbid Death, Micaela, Moonspell, Sara Tavares, Los Hermanos, Blasted Mechanism, José Malhoa, Charon, Rui Bandeira, Blind Zero, Easyway, Tony Carreira, As Meninas, Ramp, Delirium, Nuttsheel, Anjos, Santa Maria, Reno, Ena Pá 2000, Hands on Approach, Naco Goni & Steeve Zee Blues Reunion, Minninemamm Blues Band, B Flat Blues Band, Victor Aneiros Band, Quarteto Borodin, Wray Gunn e Quadrilha, Mind Gap, Maninho Baia, e até o Grupo Feminino de Cante Alentejo “Rosas de Março”, a Banda Associação Bombeiros de Loures e a Orquestra Metropolitana de Lisboa. Programas que dizem respeito a todos os concelhos da Região, às casas de espectáculo Coliseu e Teatro Micaelense, sem ter em conta ainda o Festival MúsicAtlântico, da responsabilidade do governo regional. Como contribuinte sentimo-nos defraudados com quem gere os dinheiros públicos nesta Região. Porque a esmagadora maioria destes eventos são gratuitos, pagos assim por todos nós contribuintes.
Feitas estimativas são qualquer coisa como 10 milhões de euros (2 milhões de contos), para música, dança, comes e bebes. Uma aberração, uma injustiça, quando se gasta desalmadamente estes dinheiros públicos, numa Região com enormes carências sociais, e uma das mais pobres do país e da União Europeia. Isto não faz qualquer sentido! Daria este valor para construir 200 habitações sociais, por exemplo. Ou para fomentar a criação de centenas de micro-empresas. E criar riqueza nesta terra.
Nada parece parar esta enorme onda festivaleira. Dinheiro verdadeiramente esbanjado, num despesismo e numa irresponsabilidade incompreensíveis e inaceitáveis. São importantes recursos financeiros que vão para fora da Região, porque as bandas e os artistas são essencialmente do exterior, pagos a peso de ouro. Dinheiro que desaparece sem criar qualquer riqueza nestas débeis economias insulares.
E enquanto decorrem estes arraiais há muitos açorianos amargurados e a sofrer. Há uma classe média baixa que sofre de pobreza envergonhada portas adentro. Com muitas dificuldades em gerir o orçamento familiar com os rendimentos que possuem. Há ainda aqueles que vivem nas bolsas de miséria espalhadas especialmente pela ilha de S. Miguel. Há ainda muito açorianos trabalhadores e respeitáveis, mas que não têm uma habitação condigna e aguardam há anos por uma oportunidade. Há muitos idosos doentes e pobres que estão há meses, e mesmo anos, em listas de espera para uma consulta médica. Há mais de 2 milhares de crianças em risco, provenientes de famílias desestruturadas, que aguardam ansiosamente por um projecto de vida que lhes faça sorrir.
Há instituições de solidariedade social que desesperam e têm de pedinchar para uma mera cadeira de rodas ou uma banheira apropriada para deficientes, ou para o governo pagar consultas médicas para crianças e jovens acolhidos. Há cerca de 5.000 toxicodependentes que estão abandonados à sua triste sorte, sem apoio para se livrarem do seu vício.
Enquanto se gasta desalmadamente em festas, pão e circo, aumentam os sem-abrigo que precisam urgentemente de ajuda. Há ainda 16.000 beneficiários do Rendimento Social de Inserção que vivem abaixo do limiar da pobreza, satisfazendo apenas as suas necessidades mais básicas, essencialmente as alimentares.
Enquanto as festas proliferam por todas as ilhas, há 30.000 açorianos dependentes do álcool, destruindo as suas vidas e as suas famílias, recorrendo amiúde à violência doméstica e em certos casos à violação.
Há alguns milhares de açorianos que vivem da pesca artesanal, com baixos rendimentos e mesmo incertos, e já não conseguem pagar as suas compras de mercearia. E adolescentes açorianas que engravidam, sendo a taxa nos Açores o dobro da nacional. E centenas de traficantes de drogas que fazem os seus negócios bem junto às escolas ou nos bairros de miséria. Estamos nos Açores muito longe do oásis prometido e defendido amiúde.
Enquanto isto se passa, vivemos na pândega, na festa, no arraial. É a cultura niilista, do prazer e do consumo, no seu mais alto patamar, sem olhar a custos. É um exagero incompreensível! Haja respeitos pelo erário público e acima de tudo pelos açorianos desfavorecidos e necessitados.