quarta-feira, junho 08, 2005

O Teatro Negro da Criança

O dia 1 de Junho é o dia mundial da criança. Neste dia importa recordar que a Declaração dos Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 20 de Novembro de 1959, afirma que toda a criança tem direito à "protecção e cuidados especiais, inclusive protecção legal apropriada, antes e depois do nascimento".
E neste dia milhares de crianças saíram à rua, alegres, felizes e brincalhonas. E houve festa para elas. Actuação de palhaços, bandas musicais, largada de balões, teatro, fantasias, bicicletas e até a surpresa do simpático Pontinhas, em Ponta Delgada. O resultado foi rasgados sorrisos de contentamento das crianças. Mas, infelizmente, para muitas crianças, foi mais um dia de risco, de expectativa, amargura e mesmo de tristeza.
Enquanto temos em S. Miguel o Circo da China, o Teatro Negro de Praga e nos preparamos para receber a Ivete Sangalo, à revelia daquelas imagens de alegria e folguedos, existe outra realidade bem diferente, quiçá dramática. São as crianças e jovens abandonadas à sua sorte, que deambulam nas bolsas de miséria existentes na ilha de S. Miguel, ou institucionalizadas, sem qualquer projecto de vida. São as denominadas crianças em risco. Estima-se que em S. Miguel sejam mais de 1.500 crianças em risco, já identificadas, mas ainda sem solução à vista. Os seus processos estão empilhados no Tribunal de Família e Menores ou nas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens. Uma autêntica dor de alma!
Só a Comissão de Ponta Delgada têm 742 processos. O Tribunal tem por seu lado quase 400 processos, só de promoção e protecção de crianças e jovens.
As bolsas de miséria vão desde a Ribeirinha até aos Aflitos, passando pela Ribeira Grande, Rabo de Peixe e Ribeira Seca, isto na costa norte. Na costa sul também as há nas Feteiras, na Lagoa, em Agua de Pau e na Ponta Garça. São autênticos sorvedouros de seres humanos, excluídos e carenciados, material e espiritualmente.
Enquanto os governantes e os autarcas se desdobram em sorrisos perante as crianças felizes, as outras na sua solidão, arcam com a sua amargura e sofrimento. Com a família destruída pelo álcool e pela droga, ou mesmo sem família, lá estão elas na rua ou em instituições de acolhimento de crianças, enquanto os seus processos, que vão determinar o seu projecto de vida, continuam empilhados no Tribunal ou nas Comissões. Vivem sem esperança, angustiadas e entristecidas. As institucionalizadas estão sempre atentas a alguma notícia para irem para “pais novos” ou mesmo aquela notícia de que a família já tem condições de habitabilidade e assim já recuperou para as integrar novamente, ou até a notícia de que pai ou a mãe já fez a tão desejada cura de desintoxicação do álcool ou da droga.
A Comissão de Protecção de Menores de P. Delgada tem 742 processos de crianças em risco, sem nada poder fazer. São de crianças que sofreram maus tratos, violações, negligência, e abusos de toda a natureza. Crianças que correm sérios riscos, porque estão na rua sujeitas a todos os perigos, sem solução para elas. Porque a Comissão não tem recursos humanos para poder fazer algo. Vive da boa vontade de algumas pessoas e com muitas limitações.
Por seu lado o Tribunal de Família e Menores de P. Delgada vive num verdadeiro caos. Empilhados estão quase 2.800 processos pendentes. E muitos dizem respeito a crianças e jovens: processos de adopção, de promoção e protecção, regulação, incumprimento ou inibição do poder paternal. O Tribunal não tem recursos humanos para poder dar cabal seguimento aos processos. E são as crianças e jovens que pagam por este caos, que sofrem, que desesperam. Por seu lado, nas mais de 30 instituições dos Açores, há quase 600 crianças e jovens acolhidas, muitas lá a “apodrecerem” há anos, com custos elevados para o estado e sobretudo para elas. Porque a lei de adopção é ainda demasiada pesada e burocrática, ou porque as instituições envolvidas não estão devidamente articuladas. Muitas vezes estas crianças e jovens são autênticos joguetes nas mãos dos adultos, enredadas que estão pela burocracia asfixiante e redutora que temos. Tão fácil seria para os nossos governantes resolverem grande parte destas situações. Podiam começar por alocar recursos humanos, disponíveis em algumas secretarias regionais, e assim reforçar os quadros das Comissões ou do Tribunal. Ou então pressionar o governo da república para reforçar o quadro do Tribunal. Muito simples!
Mas se calhar não é uma acção muito visível. E os políticos gostam de medidas que tenham impacte mediático. E para isso nada como uma boa obra de betão, não interessando se é um projecto de investimento reprodutivo ou não, mas que seja objecto de inauguração e descerramento de placa. E quanto mais betão for tanto melhor. Por que alimenta uma certa e determinada clientela e uns comissionistas agressivos, bem como por vezes revela-se uma excelente fonte de financiamento dos partidos políticos, quiçá com o recurso a alguns “trabalhos a mais”.
E assim continuamos, nesta sociedade insular, a assobiar para o lado, sem querer ver a realidade, e esquecendo que a família é a célula da sociedade e a criança o seu ADN.